Ela não gostava de desperdícios,
sobretudo de comida, tempo, ingressos de concertos e, claro, dinheiro: aquele
que permite comprar ingressos; trabalho; tempo alheio; alimentos, pimentão,
pão, pastel, pepino, paçoca, mariola; instrumentos, violão, viola, violino,
piano; a mistura de ambos, comida e instrumento, um pão perto do violão, um
pepino que caiu no violino, a mariola sobre a viola, e um pote de paçoca
querendo se aproximar do piano.
Detestava também desperdícios alheios de
recursos escassos, cuja disponibilidade e escassez pudessem variar conforme
época e local considerados. Sabia que não era a única privilegiada em relação
aos desperdícios. Ela também não gostava de dores e, da mesma forma, não era a
única. Não gostava também de remédios que pudessem evitar e atenuar a dor. Mas um
belo dia – nublado e chuvoso, no qual as flores, junto com o sol, se escondiam
dos jardins – ela precisou desperdiçar ingressos exatamente por causa de dor.
Perdeu o som dos violinos, dos violoncelos, das violas, das flautas, do piano e
de toda orquestra, com a paz que a música traz, pela presença forte da dor em
seu braço. Uma dor incômoda de dificultar movimentos. Ela queria apenas ter
visto seu concerto ou, ao menos, ter feito sua yoga. A dor intensa permitia
somente que se queixasse para si mesma sobre a condição de seu braço direito.
Repetia em sua mente que havia perdido o concerto e que gostaria de se livrar
daquela dor.
De repente, não mais que de repente, separou-se da queixa. Mudou o semblante e seus pensamentos começaram a
confortar não a dor física do braço, mas a dor de algumas ausências e de alguns estresses. Passava a
se convencer de que o braço melhoraria em breve e de que não podia se queixar
tendo comida sempre, ingressos, às vezes, música sempre, tempo, às vezes, e
recursos escassos, quando bem administrados, poderiam ser suficientes. Então, o
braço dolorido podia ser louvado, já que estava presente em seu corpo em
quantidade suficiente, em conjunto com outros órgãos fundamentais como cérebro,
pulmões, estômago, fígado, intestino, rins, entre outros investigados pelos médicos. Ah, e ele, o coração, claro, um órgão muscular que coloca
todo o resto para funcionar. E “todo o resto” inclui mãos, para percussão ou para
tocar piano, teclado, violino, violão ou algum instrumento não citado e
que pode depender não só da mão para ser praticado, mas também da boca. Instrumentos como sax,
clarim, trompete, gaita, flauta ou qualquer outro de sopro ou de vento.
A
boca, além de ingerir alimentos e servir para produzir sons em instrumentos
musicais de vento, às vezes, deve se fechar e se calar por causa das moscas. “Todo o resto”
inclui ainda: a) ouvidos, para detectar sons, eliminar potenciais ruídos do
processo de comunicação e filtrar aquilo que a audição deve ou não considerar; b)
narizes, que irritados produzem espirros e rinite alérgica, mas ajudam na
respiração, no canto e também na detecção de cheiros, agradáveis ou não; c) olhos,
que podem enxergar muito, enxergar pouco, enxergar muito pouco ou podem ser cegos, míopes ou até falar, o que é lindo, olhos falantes são lindos; d) pernas e pés que,
juntos, permitem ao corpo o movimento, o dançar, o bailar, a dança e o mais
belo baile de máscaras; e) braços. Finalmente, volto aos braços, que permitem às
mãos levantar taças, promover brindes, organizar movimentos, da orquestra
ou não, de esportes ou não. Eles servem tanto para a regência – do maestro, não
do português – quanto para arremessos de peso, para cortadas, saques, manchetes
ou toques do vôlei.
Intimamente ligados às mãos, os braços conduzem abraços,
apertados ou não, calorosos ou nem tanto. Os braços que abraçam e podem promover
brindes precisam estar saudáveis para tudo isso... Sem dor, sem nódulo. Apesar
disso, quando houver uma lesão, é preciso aceitar, porque uma lesão pode virar uma
lição, um indicativo de que há algo de errado, mas, mesmo assim, os braços estão
presentes, caso contrário, não estariam doloridos. Meus braços estavam lá no
dia da dor e ainda estão em mim... Graças! Embora estivessem doloridos, estavam
e o estar já bastava e basta. O simples estar do braço significava a
possibilidade de abraçar as coisas e as causas. Além disso, a extensão de um órgão
e a união com os demais, ainda que na presença do incômodo, permitiam a
formação de um organismo que reclamava de um conjunto completo, de forma que
talvez o corpo quisesse revelar algo além da dor de um nódulo muscular.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela contribuição!