A casa dela falava... Falava dos muros ao
lado, dos preconceitos, do pousar e repousar dos passarinhos, do pouso dos
aviões, das gaiolas alheias, dos conceitos. A casa dela falava... Tratava-se do
chão, do colchão, do andar de baixo, dos lares, dos laços, das novidades, das
realidades tranquilas e amenas ou nem. A casa era engraçada, mas tinha teto e
outros tantos.
Tinha parede, relógio, quadros, mais
relógios e uma vontade de congelar o tempo, por vezes. A casa dela tinha
cozinha, máquina de lavar, de escrever, de congelar tempo, geladeira,
batedeira, misteira, mistura e congelados. A casa dela tinha também às vezes fome,
forma, a repetida vontade que não passava e os congelados que permaneciam. A
casa dela tinha pães, chás e desejos; tinha vontade de receber um pão quentinho
de alguém especial com uma pitada de geleia de amora ou morango. A casa dela
era a sala; os quartos; a cozinha com os congelados; a varanda com a grama
sintética; as plantas da varanda com a grama sintética; as pessoas que
frequentavam a casa; as pessoas que poderiam frequentá-la; era amor em Si bemol
ou em Lá sustenido.
A casa dela era dela e ela. Era ela Lá de cima; era um lar
em sua complexidade, com seus muros, construções, cômodos, incômodos, portas, prós
e contras. A casa dela era dela e dela eram o conforto e a solidão. A casa dela
era a falta da família abrigada: nem pais, nem filhos, mas paz, porta-retratos,
livros, relicários, retratos tão pequenos deles dois, deles três, deles, delas...
Mais portas, notas e porta-retratos com fotografias em preto e branco, painéis,
cartas, anéis, coleções, telefonemas, recordações, pulseiras, sapateira,
cadeira, canecas, xícaras, sofá, Sol e Fá do teclado dela, a falta de alguns
itens de um novo lar, o Lá do violão a comprar, cartões postais, chocolates,
papéis, novos laços e anéis, chás, partituras, calendários e um mundo a ser decifrado. A casa dela era um lar, era dela e lá na montanha não permanecia.
Tinha os sons típicos de uma amena realidade, nem sempre amena, embora, ao
menos, distante do que já havia sido um dia.
A casa dela era engraçada, mas tinha teto
e outros tantos. Não era na montanha, nem na fazenda, nem tinha arara, aranha,
nem teia, mas telas de pintores diversos. A casa dela era engraçada e na praia:
arraia, sol, verão, o mar e a lua a ditar alguns ritmos e rituais. Na casa dela
havia um clima, nem sempre florido como o da primavera, nem sempre congelante
como o do inverno. Haviam juntos: a casa, ela, o clima dela e o da casa. E juntos
caminhavam diariamente com as cores de Almodóvar, de Woody Allen, de Adriana
Calcanhoto, de Marisa Monte, de Frida Kahlo, de Miró, de Degas, de Debussy, de
Monet e de outros tantos. E haviam, além da casa, a vida, a estrada, a avenida.
Ou a ruela da casa dela. Havia a maquininha de escrever ou o computador. O
caminho e toda a caminhada. Da vida para a casa, da casa para uma vida que ia
passando com o passar dos passarinhos e das canções.
Mas o que mais importava daquele pequeno
tudo aquilo, que tinha teto e outros tantos, era que havia na casa engraçada
uma caixa de correio igualmente engraçada... Sem nada. Não conseguiam lê-la
não, porque não havia na caixinha um borrão. Não conseguiam deixar carta
ali, porque o número estava por vir. Ninguém podia enviar nada não, porque ela era
do tamanho de um grão. Era pequena, mas tinha amor e, sobre ela, uma flor.
Na sutileza dos seus detalhes você conseguiu me fazer enxergar perfeitamente "a casa dela". Adorei!
ResponderExcluirQue bom que gostou! Obrigada! =)
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