terça-feira, 4 de agosto de 2015

A casa da caixa de correio

A casa dela falava... Falava dos muros ao lado, dos preconceitos, do pousar e repousar dos passarinhos, do pouso dos aviões, das gaiolas alheias, dos conceitos. A casa dela falava... Tratava-se do chão, do colchão, do andar de baixo, dos lares, dos laços, das novidades, das realidades tranquilas e amenas ou nem. A casa era engraçada, mas tinha teto e outros tantos.

Tinha parede, relógio, quadros, mais relógios e uma vontade de congelar o tempo, por vezes. A casa dela tinha cozinha, máquina de lavar, de escrever, de congelar tempo, geladeira, batedeira, misteira, mistura e congelados. A casa dela tinha também às vezes fome, forma, a repetida vontade que não passava e os congelados que permaneciam. A casa dela tinha pães, chás e desejos; tinha vontade de receber um pão quentinho de alguém especial com uma pitada de geleia de amora ou morango. A casa dela era a sala; os quartos; a cozinha com os congelados; a varanda com a grama sintética; as plantas da varanda com a grama sintética; as pessoas que frequentavam a casa; as pessoas que poderiam frequentá-la; era amor em Si bemol ou em Lá sustenido. 

A casa dela era dela e ela. Era ela Lá de cima; era um lar em sua complexidade, com seus muros, construções, cômodos, incômodos, portas, prós e contras. A casa dela era dela e dela eram o conforto e a solidão. A casa dela era a falta da família abrigada: nem pais, nem filhos, mas paz, porta-retratos, livros, relicários, retratos tão pequenos deles dois, deles três, deles, delas... Mais portas, notas e porta-retratos com fotografias em preto e branco, painéis, cartas, anéis, coleções, telefonemas, recordações, pulseiras, sapateira, cadeira, canecas, xícaras, sofá, Sol e Fá do teclado dela, a falta de alguns itens de um novo lar, o Lá do violão a comprar, cartões postais, chocolates, papéis, novos laços e anéis, chás, partituras, calendários e um mundo a ser decifrado. A casa dela era um lar, era dela e lá na montanha não permanecia. Tinha os sons típicos de uma amena realidade, nem sempre amena, embora, ao menos, distante do que já havia sido um dia.

A casa dela era engraçada, mas tinha teto e outros tantos. Não era na montanha, nem na fazenda, nem tinha arara, aranha, nem teia, mas telas de pintores diversos. A casa dela era engraçada e na praia: arraia, sol, verão, o mar e a lua a ditar alguns ritmos e rituais. Na casa dela havia um clima, nem sempre florido como o da primavera, nem sempre congelante como o do inverno. Haviam juntos: a casa, ela, o clima dela e o da casa. E juntos caminhavam diariamente com as cores de Almodóvar, de Woody Allen, de Adriana Calcanhoto, de Marisa Monte, de Frida Kahlo, de Miró, de Degas, de Debussy, de Monet e de outros tantos. E haviam, além da casa, a vida, a estrada, a avenida. Ou a ruela da casa dela. Havia a maquininha de escrever ou o computador. O caminho e toda a caminhada. Da vida para a casa, da casa para uma vida que ia passando com o passar dos passarinhos e das canções.


Mas o que mais importava daquele pequeno tudo aquilo, que tinha teto e outros tantos, era que havia na casa engraçada uma caixa de correio igualmente engraçada... Sem nada. Não conseguiam lê-la não, porque não havia na caixinha um borrão. Não conseguiam deixar carta ali, porque o número estava por vir. Ninguém podia enviar nada não, porque ela era do tamanho de um grão. Era pequena, mas tinha amor e, sobre ela, uma flor.