Qualquer viagem vale a pena
quando a alma não é pequena. Seja a própria viagem, seja sua viagem com uma
passageira-flor ao lado, seja a viagem de todos juntos em um só ônibus. Ou seja,
você e os demais passageiros do ônibus ou apenas as viagens de duas adultas
jovens, neste mesmo ônibus, a respeito de si mesmas. Você entra no ônibus e avisa a uma das passageiras que ela havia esquecido um pacote lá fora: “acho que você esqueceu aquela caixa lá fora do ônibus. É sua né? Cuidado para não ficar lá porque o ônibus já está partindo”. Você senta no assento número 12 e a jovem ao lado precisa de um fone. Você tem dois e empresta um fone a ela. Mas vocês duas não utilizam o fone porque não param de conversar e, então, o fone já nem tinha sido mais necessário durante a viagem, porque havia ali muita conversa e muito compartilhamento de experiência, de chocolate, de memória... Nostalgias do início de uma páscoa de verdade.

Durante cerca de três horas e meia de
conversa constante, chegam a mesmíssima conclusão da moral da história de "a lebre
e da tartaruga". A sábia fábula tem como moral a conclusão de que “devagar se
vai ao longe”, cada um com um jeito e uma velocidade, mas com a noção de que a
persistência e o esmero levam à moral de que realmente devagar se vai ao longe
[reforça-se aqui o Realmente se Vai]! Cada um no seu tempo, com variadas velocidades e cores, cada qual com suas flores e percepções sobre a viagem e
sobre uma vida que ora é em preto e branco, ora colorida. O importante é pintar, desenhar,
colorir ou até descolorir e descobrir. Colorir sozinha ou com seu priminho de
apenas três aninhos. Pode ensiná-lo a desenhar corações, estrelas ou perceber
que a visão dele sobre o Céu, as estrelas e os corações pode ser ainda mais
linda. E se tais visões não forem comparáveis, ensina-se que não o são e que as dele podem
ser tão belas quanto ele quiser e conseguir realizar [ou não] o que quiser. As
percepções dos passageiros no mesmo ônibus são diferentes, o que é lindo: a
diversidade de opiniões, em um ônibus qualquer que carrega passageiros em direção
similar ou nem tanto.
No caso do ônibus descrito, ia
rumo à Minas, rumo ao interior de Minas, rumo ao pão-de-queijo, rumo aos doces da páscoa, rumo aos ovos de chocolate feitos em casa (aos comprados
também para entregar a crianças que ainda não possuem), rumo ao sentido do feriado de páscoa, rumo à criança que deve haver em cada um de nós, rumo à vovó,
rumo ao seu priminho, à brincadeira saudável, ao cantar, ao sorrir, ao dançar,
rumo os rumores alheios de um um ônibus
desconhecido ou rumo aos novos conhecidos que merecem ser mantidos, na memória
das trocas de uma única viagem em conjunto ou ao longo do passar das horas, das
fotografias que ainda podem ser clicadas com a câmera do celular ou de outro
equipamento, das músicas e experiências que podem ser cambiadas, além do
chocolate, além das lembranças que desejamos manter. Rumo ao passar do
ônibus pelas paisagens, passagens e tickets, ao passar dos passarinhos, dos
mares, das paixões, das tempestades ou rumo a uma nova visão do Sol, com
admiração maior de seu movimento, desde quando nasce até que se ponha. Um novo
renascer a cada dia e o movimento da Lua também. Não podemos virar “pessoas
grandes” e deixar de admirar os corpos celestes. Quando pequena, uma amiga
tinha uma amiga que fazia olimpíadas de matemática e astronomia. Como ela ia
bem em matemática e em astronomia nem tanto, focou na matemática e acabou se
esquecendo um pouco dos planetinhas.
Voltando à viagem do ônibus, no
final daquela parte da estrada e da conversa constante, uma das passageiras só
tinha a pensar: seu projeto é longo, Tamar. Não ousaria dizer se você está no
caminho certo, porque dele só você sabe bem, só você conhece tão bem quanto
você seu próprio caminho ou, pelo menos, busca conhecer. E você busca, Tamar, o
que te faz ainda mais bela. Sei disso porque vi além dos seus cabelos, que são
lindos... Cacheados na ponta e lisos no início, um tanto quanto isentos de
tanta vaidade e, ainda assim, muito belos. Belos, inclusive, pela
espontaneidade deles e pela pessoa que enxerguei atrás deles, ou melhor, pela
pessoa que movimentava aqueles discretos cachos no ônibus. Cachos como ondas no
mar, maiores ou menores, mas há sim um mar em seus cabelos. E nos olhos há
flores, dois girassóis especificamente, buscando a luz e o brilho do Sol, a
energia luminosa dos 22, que poderiam ser 19, 25, 55, 85 anos ou além. Você
parece buscar, Tamar, a energia luminosa da vida, em meio a uma escuridão que
existe.
Outra passageira se despediu do
motorista do ônibus, agradeceu e desceu com sua criança. Os passageiros
continuaram naquela viagem depois que você saltou, Tamar. As pessoas do banco
da frente diziam que a viagem não tinha sido cansativa... Nada cansativa. Naquele momento, pensou-se que "a viagem
tinha sido ótima, eu e Tamar nos conhecemos, nem usamos os fones e os celulares
apenas registraram o momento a partir de algumas fotos". Enquanto íamos por aquele trajeto,
a Marisa Monte e o Nando Reis já haviam anunciado que enquanto íamos pela
manhã, em certas regiões, já anoitecia. Enquanto íamos por aquele trajeto, as
crianças lá no ônibus [algumas atrás outras na dianteira] perguntavam
continuamente “estamos chegando mamãe, estamos chegando”? Exatamente o que fazem as crianças em viagens longas de carro com a família. Milhares delas, na infância, ficam o tempo todo querendo chegar logo aos seus destinos [ou ao destino destinado pelos
pais] para determinadas viagens.
Uma das crianças [pela voz, percebia-se, naquele momento, que era o mesmo menininho] dizia: “Estamos chegando né, mamãe?”. Suas perguntas [igualmente] constantes pareciam leva-lo a chorar
porque ainda não havia chegado ao final destinado pelos pais. O mesmo menininho, lá no fundo do ônibus,
gritava, ao mesmo tempo que falava de cores: “tem azul, amarelo; amarelo e
azul”. Ele falava das cores que via, não das cores dos álbuns da Marisa, dos
filmes de Almodóvar, nem das cores de Frida Kahlo; ou de demais musicistas, diretores,
pintoras ou quaisquer artistas que talvez nem conhecesse. O menininho falava
das cores que queria ver, conhecer e talvez pintar. O menininho continuava lá no ônibus
perguntando à mãe sobre o tempo daquela viagem, o que, de modo traduzido para a
linguagem infantil, significava “estamos chegando na vovó, mamãe”? Nem é na
casa da vovó que a criança falava, era direta e sinceramente “na vovó” que o
menininho queria chegar, embora o destino da família fosse a casa da avó do
menino. Na visão das “pessoas grandes”, eles dois [menino e mãe] chegariam a
uma casa, a uma construção de concreto, construída por pedreiros com tijolos,
cimento e demais materiais de construção. Com tintas de diferentes preços e
marcas para colorir casas, lares e construções de modo geral. Os dois poderiam
chegar a uma mera casa ou a um lar, cheio de possibilidades. Poderiam chegar à
casa ou ao lar da vovó.
Enquanto o ônibus seguia sua
direção, uma pessoa adulta não parava de olhar, só porque você não tirava a lapiseira grafite 0.7 [que poderia funcionar com grafite 0.5, ser lápis, caneta, etc.] do seu
bloco de notas e desviava o mínimo possível o olho do bloco. O cara lá na
frente dirigindo o trajeto [conhecido como motorista do ônibus], disse:
“Martins Soares”. Então, já em Minas, depois da fronteira com Espírito Santo, percebeu-se
que realmente estava perto de Manhuaçu. Estava chegando mesmo. Você, que havia conversado sobre seu
percurso com a Tamar, que havia escutado bem o dela, que tentava dar conselhos
sobre os cursos que poderiam ser feitos, desfeitos ou refeitos, levava do
ônibus algo além de suas malas, das bagagens e das memórias. Levava as
percepções do ônibus, de uma viagem de ônibus e de algumas viagens
interiores dentro de um ônibus.
Você levava as suas ideias e o que havia
percebido em algumas horas ao lado de outra pessoa. A outra pessoa havia
saltado antes e, em breve, você saltaria, sabia que saltaria do ônibus depois da
Tamar, porque os destinos eram diferentes. Aconselhava a pessoa ao lado de que
as experiências são válidas, já que aprendemos com elas o que fazer ou, pelo menos, o contrário... O que não fazer! Buscamos
aprender e a Tamar parecia buscar... Então, na realidade, a Tamar talvez nem precisasse de tantos conselhos, mas conselho é mesmo uma forma de nostalgia. Então, depois que ela saltou, você deixou as demais
pessoas com suas percepções e não compartilhou a sua com mais nada nem ninguém, além do
próprio bloco de notas. Enquanto o ônibus não chegava ao destino, você anotava,
escrevia, aguardava, tentava guardar o bloco e ficava com as perguntas, as respostas, as
palavras, as vozes e a pureza das crianças falando sobre cores, sobre a chegada
ou sobre os caminhões e caminhos da estrada. Você decidiu [e decide] ficar com a pureza das
respostas e dos questionamentos infantis, porque isso também é vida... A vida é bonita, é bonita e é bonita mesmo! Você acredita que é e sente que ela, embora finita e injusta, vale a
pena.
Você sabe e sente que a vida vale muito e que uma hora a viagem acaba, descalça no parque, ou não, deitada em outro lugar,
com pessoas queridas ao redor ou nem tantas. Você sabe e sente que o ônibus vai
chegar em breve no interior de Minas e que qualquer viagem, em algum momento,
chega ao fim, porque [assim como para cada panela há uma tampa] para toda viagem há um destino final. Então, as respostas
das crianças são respondidas pelas mães “sim, chegou” e aqueles pequeninos seres continuam falando das cores. A vida continua bela se repararmos as
simplicidades dela, da preciosidade denominada vida; se repararmos alguns
comportamentos das crianças e repararmos nelas, em vez de tentarmos modificar tanto as "pessoas grandes" que não querem ser reparadas. Porque as crianças continuam falando das cores e o amarelo já havia virado Yellow no ônibus. E elas continuavam falando das cores...


O que importa, além de observar os pequeninos, os
pequenos detalhes, o meio ambiente e nem sempre tentar reparar os grandes
detalhes, nem as "pessoas grandes", é incentivar algumas mudanças nas pessoas adultas que
você acha que merecem e que podem ouvir. O que importa, além de si, é o amor
que você dá e recebe até o ônibus chegar à parada, ao destino final dele,
com um passageiro saltando aqui e outro ali, com as crianças comendo guloseimas e falando até dos
esportes que ainda não praticaram e de cores ao mesmo tempo. O que importa é cada
passageiro, com uma história e com suas respectivas "morais da história", algumas registradas em livros, inclusive infantis, outras registradas na memória e no coração das pessoas. O que importa também é querer viajar e se permitir
ser o passageiro do ônibus ou da moral da história. Permitir-se, ao final da
viagem dizer aliviado e em paz: viajei bem, gostei da viagem, o motorista não
correu tanto, ou só correu quando precisou acelerar, chegamos todos bem ao
destino final, ao juízo final próprio, alheio, ou apenas à rodoviária. Chegamos
bem graças a todos, cheguei bem graças a mim, inclusive, então, posso sair do ônibus e caminhar rumo à vovó.
As crianças presentes no ônibus vão à casa da avó para passar o
feriado da Páscoa. Você quer
continuar ouvindo as crianças, internas ou externas ao ônibus e a
você. Elas continuam falando das cores da vida. Então, lembre-se Tamar: importa conhecer e cativar alguém, importa amar alguém, importa ouvir Marisa Monte também. Ela canta que é preciso ter “atenção para escutar o que você quer saber de verdade”. Ah, reitero que conselho é uma forma de nostalgia. Além desses pequenos conselhos sobre um pouco de tudo isso, o que importa é que há tantos motivos que importam, que a vida vale a pena e, por vezes, é bem bonita. Foi um prazer conhece-la, temos ainda muitas fotografias para registrar das paisagens naturais, das crianças e até de nós mesmas, uma da outra. O motorista, aquele que no início da viagem deu
instruções aos passageiros, dizia ao final: “bom feriado a todos, bom fim de
semana”. Você sorri, agradece ao motorista, mentalmente aos passageiros que
viajaram com você, pela inspiração e pela companhia, sai do ônibus, para de
escrever mesmo no bloco e sai da rodoviária com todas aquelas bagagens.