sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Do glossário de Clarissa

Para Clarissa, aquele dia havia sido um daqueles em que a escrita a convocara, não a acadêmica... E não era possível negar. Então, ao olhar para a frente, começara a escrever e descrever a posição dos objetos. Vira dois passarinhos, um sobre a mesa da sala, outro sobre a gaiola sobre a mesma mesa. O passarinho sobre a gaiola foi feito de madeira. A gaiola sob o passarinho continha uma vela apenas e não ficava fechada, mesmo que não houvesse passarinho em seu interior. Clarissa olhara, através da cortina branca da sala, de um lado, para seus quatro mini cactos, tão fofos de tão minis, mas mais crescidos do que antes. 




Do lado oposto ao de seu pequenino jardim, olhara para a máquina de escrever, ao lado da orquídea e da sua mais nova caneca, com uma pequena flor dentro e escritos em seu exterior. Naquele espaço, neste texto e contexto, a máquina de escrever se posicionara sobre um móvel antigo, também de madeira, presente do pai, próximo a dois quadros nem tão antigos quanto a máquina preta de escrever. No móvel, parte de sua coleção de canecas guardadas, que aguardam novas xícaras, souvenirs, e quem sabe canetas, até então em outro espaço. Flores, fluxos, sons e quadros não faltam no ambiente, nem porta-retratos. Sobre o móvel antigo, três deles. Três miniaturas também e uma bailarina, apenas uma.



Não é novidade que cada um lida de forma distinta com seus próprio espaço, com seus compassos, passos, sentimentos, espaçamentos, contextos, circunstâncias, textos, lembranças e que, no decorrer do tempo, isso se altera. Clarissa era do tipo que gostava de dar e receber cartões. Comprava cartões nas viagens que fazia, sem destinatário em mente, para levar na mala e guardar em sua caixa de cartões e memórias, até que encontrasse a pessoa que fosse “a cara” daquele cartão x ou do y. Cartões em si, talvez não sejam tão belos, mas as palavras que preenchem cada espaço dos cartões sim... Essas sim! As letras, as linhas e a organização de letras em palavras, de palavras em frases, de frases e pontuações, até o final, constituem o cartão em si. 





Mas o mais importante são as emoções por detrás das letras, linhas e lições. Então, o que dizer sobre cartões aleatoriamente comprados, que se transformam em cartas, após escolhidos, a dedo, os destinatários? Eles completam o que as pessoas nem sempre dão conta de dizer pessoalmente, em voz alta e claramente. Eles, os cartões, revelam momentos pontuais de um sentimento, ou de vários deles, que perduram ou se modificam, de alguma forma, a se guardar na memória por meio de algo além de um papel. 


É como se cartões fossem glossários de sentimentos, ao traduzirem emoções um tanto quanto obscuras, por vezes, em ordem cronológica, quando datados, os cartões, em palavras a serem lidas e, além, interpretadas. É como se fossem dicionários de sentimentos. O que dizer de um tradutor de substantivos, sentimentos, satisfações  e outros tantos? Se o glossário fosse de Clarissa, traria no início, admiração, afago, afeto, alegria... E amor, claro! Admiração, entre fotos, fatos, canções e afetos, o Sol lá fora já posto, as nuvens em movimentos lentos, a chuva passada, aquela que levou o cheiro de grama molhada da cidade. No dicionário de Clarissa, posicionava-se a admiração logo no início, caminhando lado a lado com o amor, em dias nublados ou nem tanto; chuvosos ou nem; em noites mal dormidas ou nem.



Há quem diga que um glossário de sentimentos deve, necessariamente, preservar para todo sempre a palavra Amor. Ah, o amor, esse contentamento descontente; esse mote de poemas; essa ferida que dói e não se sente, mas por vezes sim; esse sentimento desejado por muitos; vivenciado inclusive pelos relutantes, que não o desejam; descrito por poetas, relatado, escrito, traduzido de diversas formas e experienciado por reles mortais. Há quem diga que um glossário assim não é feito de um ABC qualquer, pelo contrário, requer dedicação e um punhado de canela e cor no coração, desde o início, preferencialmente. 



Há quem diga que bom mesmo é se o glossário, depois do C, de coração, não contivesse o Desamor, escondido na mala da esperança de se tornar um dia outra coisa, desde que Bela, entre as letras A e D. Culpa e Compaixão começam com C, mas não valem. Decepção e Dó, esquece-se, embora existam. Só o dó do piano que cabe no glossário de Clarissa. Logo após, já na letra E, vem a esperança, não necessariamente em forma de inseto, não necessariamente pintada de verde, mas acompanhada, muitas vezes, da expectativa. E sobre Expectativa, o que dizer, por sinal? 


Pois bem, elas sinalizam que podem vir Decepções pela frente, embora no glossário as Decepções estivessem antes, ainda na letra D. Daí vêm as letras F, com suas Frustrações e G, com toda a Gratidão que houver nessa vida, um punhado maior de Amor e alguma dose de Antimonotonia. Do I o glossário inventa que não há inveja no mundo e nem infelicidade, até que se prove o contrário, acha-se graça daí. Clarissa, em seu glossário, pula algumas consoantes, J, K, L, M, N, e também a vogal O, já que o Ódio, a Ostentação e as Mágoas merecem morar longe. Chega-se, então, à letra P. 


Bom mesmo é que o glossário nunca contivesse algum Ódio ou sentimento similar, mas o Perdão logo após o O compensa. Poderia conter, ainda na letra P, paixão de sobra, mas essa não se cobra, não se empresta, não se vende, nem se negocia, apenas leva à beleza e à inquietude.



Se fosse musical, o dicionário de Clarissa conteria O Quereres do Caetano, ou no R, “aqui, ali, em qualquer lugar", a Rita, a Lee, cantando Beatles em forma de bossa. No S, o glossário de Clarissa seria composto por diversos sambas. Um salve inclusive ao Saravah, afinal é melhor ser alegre que ser triste e a alegria está no início. Nos arredores do T, teria tanto a dizer o glossário de Clarissa... Cantaria até um pouco de tristeza, só para fazer um samba com beleza, esquecer o Sofrimento do samba e afastar qualquer Tédio. Ao passear pelas letras U, V, X e Z, Clarissa lembraria nada mais nada menos que seu glossário é apenas um tipo de dicionário e que os sentimentos são um tanto complexos para breves descrições formais. Como tal, glossários desconhecem o significado de muitos verbetes que os humanos insistem em traduzir, abreviar, citar, colorir ou descolorir, concordar, desenhar, desdenhar, desenvolver, desfazer, editar, deletar, pintar e pluralizar. No vocabulário dos glossários, cheios de substantivos, os sentimentos talvez não levem outros tantos, como nos cartões com destinatários e nas cartas.