quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Da carnavalia de Clarissa, o que importa?

E por aquele carnaval Clarissa se apaixonaria... Para Clarissa, aquele era um carnaval em que não esperava nada além do próprio encontro consigo, de um punhado de amor-próprio, de estudo, além de meia dúzia de ovos na geladeira, um suco de caju, maracujá ou manga; uma ida ao supermercado - apenas uma bastava -  ou ao cinema, ao qual uma não bastaria. Ela, que fazia tapioca de banana e que, por vezes, ia à feira de quarta-feira, que não estava à toa na vida, que não pensaria ver a banda passar cantando coisas de amor, viu além... Viu várias bandas passarem, viu a Julia, a Luiza, o Vitor; ouviu as marchinhas, ouviu o Chico e o Gil e mais... Talvez não tivesse escutado tantas canções e coisas de amor cantaroladas, mas quem liga? Deixe ela dançar, a menina dança. 

E quem sabe amanhã ou depois tudo não voltasse ao normal?! A casa em ordem, a papelada, a pipocada, os pastéis e mais papéis, os artigos, os móveis antigos, a máquina de escrever, a decoração com flores, a falta dos blocos, das marchinhas e daquela carnavalia toda preenchendo a avenida. As louças, os livros, os lenços, as legendas e traduções dos filmes e das conversas, os confetes, os doces, os detalhes, os desfiles, os discos, os dissabores e sabores da vida, enfim, tudo aquilo que se pode guardar, inclusive na memória, inclusive de um ano desses que a memória não deleta nem por reza. E para quê deletar? 

Para Clarissa, não importava se a normalidade do amanhã não viesse tão recheada de Chico ou de qualquer marchinha de carnaval digna de se guardar como lembrança a sete chaves, nas fotografias, nas fantasias e nos retratos nem sempre tão pequenos daquela carnavalia. Não importava se o amanhã viesse, ao invés disso, acompanhado por uma monotonia típica de uma segunda-feira. 

Naquele dia, não importava, poucas horas valeriam o carnaval por completo, mesmo com o tempo de estudo, mesmo com todo o calor do verão, mesmo com os afazeres domésticos, com todos os "embora" e "contudo”, com todos “todavias” e “poréns” de todo o dia. Naquele instante, naquele carnaval, os olhos de Clarissa brilhavam mais do que as porcelanas de sua estante; o sorriso dela parecia tão colorido quanto um arco-iris e estava preenchido por um misto de sentimentos, como de cores, detalhadamente enriquecidos pela presença dos amigos, das canções, das fotos novamente, dos fatos, de bandas esperadas, de músicos inesperada e aleatoriamente preenchendo a rua toda de positividades e daquele clima de carnaval de noventa e tal. 

O resultado daquela mistura não era tão preciso, pois a exatidão para Clarissa nem sempre bastava e ela acreditava que a reza e a escrita não eram tão próximas da matemática quanto a música. O resultado daquele misto de sentimentos não era tão preciso, embora precioso fosse. E Clarissa teria sido abordada por alguém que se lembrara dela de outros carnavais? Quem é ela, quem é ela? E Clarissa confessava a si mesma o quanto a escrita descrevia os frutos daquele feriado prolongado. 


Lembrava-se da frase “Kafka fez da arte sua reza” e rezava intensamente em formato de palavras inundadas por rimas e ritmos... ao colocar no papel linha por linha, letra por letra, emoção por emoção, o que sentira naquele carnaval, que logo voltaria ao normal, mas que iria além de Chico e de canções de amor.

Ps.: "Vem pra minha ala que hoje a nossa escola vai desfilar. Vem fazer história que hoje é dia de glória neste lugar. Vem comemorar, escandalizar ninguém.
Vem me namorar, vou te namorar também. Vamos pra avenida, desfilar a vida, carnavalizar", já dizia a música.

"Eu conheci uma guria que eu já conhecia de outros carnavais, com outras fantasias", respondia o outro som.