E por aquele carnaval Clarissa se
apaixonaria... Para Clarissa, aquele era um carnaval em que não esperava nada
além do próprio encontro consigo, de um punhado de amor-próprio, de estudo, além de meia
dúzia de ovos na geladeira, um suco de caju, maracujá ou manga; uma ida ao
supermercado - apenas uma bastava - ou
ao cinema, ao qual uma não bastaria. Ela, que fazia tapioca de banana e que,
por vezes, ia à feira de quarta-feira, que não estava à toa na vida, que não pensaria
ver a banda passar cantando coisas de amor, viu além... Viu várias bandas
passarem, viu a Julia, a Luiza, o Vitor; ouviu as marchinhas, ouviu o Chico e o Gil e mais... Talvez não tivesse escutado tantas canções e coisas de amor cantaroladas, mas quem liga? Deixe ela dançar, a menina dança.
E
quem sabe amanhã ou depois tudo não voltasse ao normal?! A casa em ordem, a papelada, a pipocada, os pastéis e mais papéis, os
artigos, os móveis antigos, a máquina de escrever, a decoração com flores, a falta dos blocos, das marchinhas e daquela carnavalia toda preenchendo a avenida. As louças, os livros, os lenços, as legendas e traduções dos filmes e das conversas, os confetes, os doces, os detalhes, os desfiles, os discos, os dissabores e sabores da vida, enfim, tudo aquilo que se pode guardar, inclusive na memória, inclusive de um ano desses que a memória não deleta nem por reza. E para quê deletar?
Para Clarissa,
não importava se a normalidade do amanhã não viesse tão recheada de Chico ou de
qualquer marchinha de carnaval digna de se guardar como lembrança a sete chaves,
nas fotografias, nas fantasias e nos retratos nem sempre tão pequenos daquela carnavalia. Não importava se o amanhã viesse, ao invés disso, acompanhado por uma monotonia típica de uma segunda-feira.
Naquele dia, não importava, poucas horas valeriam o carnaval por
completo, mesmo com o tempo de estudo, mesmo com todo o calor do verão, mesmo
com os afazeres domésticos, com todos os "embora" e "contudo”,
com todos “todavias” e “poréns” de todo o dia. Naquele instante, naquele carnaval, os olhos de Clarissa
brilhavam mais do que as porcelanas de sua estante; o sorriso dela parecia tão
colorido quanto um arco-iris e estava preenchido por um misto de sentimentos,
como de cores, detalhadamente enriquecidos pela presença dos amigos, das
canções, das fotos novamente, dos fatos, de bandas esperadas, de músicos
inesperada e aleatoriamente preenchendo a rua toda de positividades e daquele
clima de carnaval de noventa e tal.
O resultado
daquela mistura não era tão preciso, pois a exatidão para Clarissa nem sempre
bastava e ela acreditava que a reza e a escrita não eram tão próximas da
matemática quanto a música. O resultado daquele misto de sentimentos não era
tão preciso, embora precioso fosse. E Clarissa teria sido abordada por alguém que se lembrara dela de outros carnavais? Quem é ela, quem é ela? E Clarissa confessava a si mesma o quanto a
escrita descrevia os frutos daquele feriado prolongado.
Lembrava-se da frase “Kafka
fez da arte sua reza” e rezava intensamente em formato de palavras inundadas por rimas e ritmos... ao colocar no papel linha por linha,
letra por letra, emoção por emoção, o que sentira naquele carnaval, que logo
voltaria ao normal, mas que iria além de Chico e de canções de amor.
Ps.: "Vem pra minha ala que hoje a nossa escola vai desfilar. Vem fazer história que hoje é dia de glória neste lugar. Vem comemorar, escandalizar ninguém.
Vem me namorar, vou te namorar também. Vamos pra avenida, desfilar a vida, carnavalizar", já dizia a música.
"Eu conheci uma guria que eu já conhecia de outros carnavais, com outras fantasias", respondia o outro som.
Vem me namorar, vou te namorar também. Vamos pra avenida, desfilar a vida, carnavalizar", já dizia a música.
"Eu conheci uma guria que eu já conhecia de outros carnavais, com outras fantasias", respondia o outro som.